Em Maio de 2020, fui obrigada a reconhecer o óbvio - estava grávida - e tudo mudou, e o sentimento de culpa costurou-se pela minha coluna vertebral, como se de um verdadeiro parasita se tratasse, e (dizem as más línguas) já não me abandona mais até ao resto da vida.
Nessa altura, considerava altamente improvável (para não dizer mesmo impossível) alguém engravidar à primeira tentativa, por isso, culpei a pandemia e os dois meses de confinamento das minhas náuseas, dos enjoos, dos calores e das dores nos seios.
Como estava a ficar "nutridinha" decidi fazer ginástica passiva com aquelas maquinetas autocolantes que parecem dar choques. E, nos dias especiais, como aquele 12 de Abril em que me "apareceu o período", regava muito bem alcoolicamente as celebrações...
Naquela manhã, em que aceitei fazer o teste e não foi preciso esperar muito para ver os dois tracinhos, a Culpa fez a sua entrada triunfal em cena. "Idiota, tentaste eletrocutar o bebé! Pior, tentaste afogá-lo em sangrias e outras bebidas alcoólicas!".
Passados uns três meses, fomos diagnosticadas com artéria única umbilical e a Culpa ganhou espaço. "É o teu estilo de vida. Se a tua alimentação fosse diferente isto não acontecia." E as hipóteses clínicas, neste tipo de cenários, davam-lhe força. "Anomalia, má formação, insuficiência renal, sopro cardíaco... Tudo porque não lhe fazes chegar nutrição suficiente". [Agora já sei que o problema estava mais em expelir resíduos do que em receber o que quer que seja, mas a Culpa não precisa de factos.]
Em Dezembro, reuni-me para jantar com umas amigas que não via há já um ano e que queriam conhecer a minha barriga de grávida. Fui imensamente feliz (em ano de pandemia, estar com pessoas era como ganhar na loteria) e o meu corpo ficou inundado de oxitocina. No dia seguinte, não me sentia com muita energia e escolhi descansar. As dores abdominais não eram intensas, a perda parcial do rolhão não significa nada por si só e, como ainda estávamos nas 36 semanas, eu queria acreditar que era cedo. "Se tivesses ido logo para o hospital podia ter dado para controlar tudo antes de entrares em trabalho de parto, se tivesses bebido mais água podias ter reduzido as contrações... Só tu podias ter feito a diferença!"
A Catarina nasceu às 36 semanas, um ser em miniatura arrancado a ventosas do meu útero para uma incubadora. E a Culpa instalou-se como se fosse tudo seu porque já nem tinha que dividir atenções.
Quando eu tive alta e a Catarina não e me "obrigaram" a ir dormir a casa, sem ela... Quando ao fim de uma semana me atormentaram porque ela estava a perder peso e num bebê tão pequeno isso não pode acontecer... Quando insinuaram que eu não tinha leite... Em todos esses momentos, ela estava lá, a Culpa, sempre a pairar com aquele sorriso e aquela expressão "Sim, eu sou toda tua!".
Honestamente, há muito pouco na vida de um bebê que não seja culpa da mãe... Ou porque o mimou demais ou porque o ignorou demais (ou 50500 outros exemplos), nunca vai estar bem e quem fez essa escolha foi a mãe.
Há poucos dias (sábado, 19 de Fevereiro), a Catarina decidiu testar a temperatura do aquecedor a gás que existe em casa dos meus pais. Eu estava ao lado dela e não fui rápida o suficiente. Ainda não tinha percebido o que tinha acontecido (queimadura de segundo grau na mão esquerda) e já a minha fiel companheira pulsava alegremente contra todos os músculos do meu corpo. "Temos pena! Agora tens que a levar para o hospital. Ainda vais ser acusada de maus tratos porque estavas com ela e não fizeste nada! És uma mãe desnaturada."
A Culpa é dura, é implacável, é incapaz de perdoar, mas é também uma criação do nosso cérebro, alimentada muitas vezes pela nossa sociedade (onde toda a gente sabe o que é certo ou é errado...na vida dos outros).
E, para mim, vem colada com esse tal de Amor Incondicional. Se eu não me preocupasse e não tentasse fazer o melhor que sei por esta pessoinha, a Culpa não tinha a menor hipótese porque deixava logo de fazer sentido.